Encontramo-nos imersos numa era em que a linguagem já não é simplesmente um veículo de comunicação, mas um autêntico campo de batalha! Uma vez que que as palavras deixaram de ser (em grande parte) instrumentos de esclarecimento, para se tornarem armas de guerra simbólica. A política contemporânea — especialmente nos debates públicos, nos media e redes sociais — é palco duma profunda degradação do ponto de vista de elevação do discurso. Em vez de profundidade, impera a simplificação, em vez do argumento, o insulto, e em vez da razão, a emoção. E talvez o mais corrosivo dos sintomas, seja a banalização da semântica hiperbólica, essa inflamação do léxico político que transforma tudo em jogo de ping pong extremo: ou se é fascista ou se é comunista, ou se está com a liberdade ou contra ela, ou se é um alto patriota ou o maior traidor da pátria. É incrível como tudo tem de ser ou 8 ou 80, taxativamente: céu ou inferno, vitória ou derrota, glória ou apocalipse. E nesse teatro de exageros, a verdade, que raramente se encontra nos extremos, diga-se, torna-se vítima silenciosa destes personagens!
De que falo quando me refiro a hipérbole política? A hipérbole, por definição, é uma figura de estilo exagerada para fazer uma ideia/afirmação/argumento parecer mais importante do que realmente é, ou então, causar impacto imediato! Na literatura e na arte, serve para dramatizar ou intensificar uma emoção por exemplo, já na política, tem sido usada para fins mais perniciosos: chocar, assustar, mobilizar pela raiva, reduzir o adversário à caricatura unidimensional ou fácil. Ao longo da história, esta tendência sempre esteve presente em momentos de polarização, nada de novo aqui, no entanto, o que assistimos no presente é praticamente a normalização desse exagero como linguagem corrente. Já não é apenas em momentos excecionais que os políticos, média, e quem comenta nas redes recorre a termos extremos — é no quotidiano, em cada debate, em cada manchete de jornal, em cada post.
E num mundo que privilegia o imediato, o sensacional e o viral, a hipérbole torna-se rainha e senhora, pois é a forma mais chamativa e eficiente de garantir a atenção do público-alvo. A ponderação, por sua vez, é vista como fraqueza, ou pior, como indecisão, daquele que fica em cima no muro e não escolhe um lado — acabando por “apanhar” dos dois! E desse modo, a política deixa de ser o espaço do possível... para se tornar o teatro do absoluto.
Palavras com um peso histórico tremendo tornaram-se, no discurso atual, rótulos e slogans cheios de nada! O termo “fascista!”: que devia remeter para um regime autoritário, nacionalista e extremamente repressivo, associado a um dos capítulos mais negros do século XX, é hoje atirado com leviandade a qualquer um que defenda por exemplo controlo migratório, medidas de segurança reforçadas ou até políticas um pouco mais conservadoras.
Do outro lado da barricada ouve-se “comunista!”: termo que se tornou insulto automático a quem critique o capitalismo desenfreado, proponha maior redistribuição de riqueza, ou defenda direitos sociais mais amplos.
E o problema disto tudo, é que nós sabemos bem que estas etiquetas servem menos para descrever a realidade, e mais para moldar a perceção daqueles que queremos influenciar... são estratégias de deslegitimação rápida: colar ao adversário um rótulo com carga emocional forte, que dispense o debate e provoque repulsa imediata! Pois se o outro é “fascista”, então não vale a pena escutá-lo, já que é alguém desprezível, que quer controlar todo e todos através do poder absoluto. E se é “comunista”, também não, pois é sinal de que quer transformar o país numa ditadura russa ou bolivariana. A questão aqui já não é quem tem razão, mas quem grita mais alto e com mais indignação, quem constrói e mantém a melhor narrativa.
Notem, a polarização como método de combate político não é nova, e este fenómeno não surge por acaso. A política de hoje, especialmente num ambiente mediático já extremamente saturado, depende da construção de narrativas que sejam facilmente emocionais, maniqueístas e, consequentemente digeríveis. A polarização extrema é uma estratégia de mobilização: quanto mais se vilifica o outro e o seu lado, mais se reforça o sentido de pertença “à nossa tribo.”
Mas não nos enganemos a este respeito, ambos os lados do espectro político recorrem a este mecanismo meus caros. À esquerda, há quem veja qualquer crítica (mesmo que justificada) à imigração como xenofobia, ou qualquer defesa de valores tradicionais como a pior forma de etnocentrismo.
À direita, por sua vez, há quem veja qualquer proposta de justiça social como tentativa de instaurar um “regime” soviético, e qualquer ativismo progressista como um ataque à civilização ocidental.
O resultado? É que o espaço para a nuance no debate e possível convergência, acaba por desaparecer quase por completo. Os moderados viram alvo de desconfiança de ambos os lados — acusados de serem coniventes com o “inimigo.” A política torna-se um campo de trincheiras em que a empatia e o diálogo são substituídos pela suspeita e pelo ódio constantes!
O papel dos media e das redes sociais tem muito a ver com isto tudo. A imprensa tradicional, pressionada pela lógica do clique e da atenção (vinda das redes) já incorporou determinadas “manias”, cedendo frequentemente à tentação do sensacionalismo. Afinal de contas, manchetes inflamatórias vendem mais do que análises ponderadas. Os programas de comentário político, outrora espaços de debate sério, tornaram-se arenas de gladiadores ideológicos, onde o objetivo é destruir o adversário, em vez de construir ideias edificantes em conjunto.
Nas redes sociais, a dinâmica é ainda mais agressiva, algoritmos premiam conteúdos extremos e polarizadores (“nós contra eles”), porque são os que mais geram interação — seja amor ou ódio. A indignação moral tornou-se a moeda de troca do discurso online, e nesse ambiente, a semântica hiperbólica floresce como erva daninha: slogans, memes, insultos e soundbites substituem qualquer tentativa de argumentação séria.
E o que falar do medo como instrumento de controlo? O bom e velho medo! Porventura o aspeto mais perigoso desta dinâmica seja o uso sistemático do medo como ferramenta de manipulação política. Se o outro lado vencer, diz-se, será o fim do país, da democracia, da liberdade, da economia, da cultura etc. Esta profecia do colapso serve para justificar tudo — desde medidas de emergência até à erosão de liberdades civis.
Quando a política se constrói sobre o medo (venha ele da esquerda ou da direita), a sociedade entra em estado de alerta permanente. Cria-se uma cultura de suspeita, de ressentimento e muita, muita raiva contida! A confiança nas instituições degrada-se, o tecido social rompe-se, e, ironicamente, essa instabilidade alimenta os próprios extremos que se pretendia evitar.
Na opinião deste autor, existe uma urgência no que toca ao recuperar da linguagem apropriada, e não se trata somente de fazer um apelo ingénuo à moderação. Há momentos em que é necessário indignar-se, levantar a voz, denunciar abusos... em última instância, lutar pela própria sobrevivência! Mas o problema está em transformar a exceção em regra, o alarme em rotina. Quando tudo é fascismo ou comunismo, quando tudo é catástrofe ou salvação, a linguagem perde o seu poder de descrever o real.
Precisamos realmente recuperar o valor das palavras, resgatar o sentido histórico dos conceitos. Recusar o impulso fácil de reduzir o outro a uma caricatura. Aceitar que a realidade é complexa, que há zonas cinzentas, que o adversário político pode estar errado sem ser um monstro.
A política é, ou deveria ser, a arte de viver em comum com a diferença. Quando a linguagem se transforma numa trincheira, perdemos essa arte. E, com ela, perdemos também a democracia — não numa explosão dramática, mas numa erosão lenta, alimentada pela hipérbole, pela mentira e pelo medo.
Entre o ruído e o silêncio é onde tem de nascer a responsabilidade! Vivemos num tempo em que todos falam, todos exigem ter “voz”, mas poucos realmente querem escutar... Saiba-se que o ruído da hipérbole abafa a voz da razão, o insulto torna-se substituto da crítica. E no meio deste caos semântico, as palavras perdem o seu peso, o seu valor, o seu significado.
Aqui a responsabilidade é coletiva: dos políticos que usam a linguagem como arma de destruição, dos media que privilegiam o choque em vez da substância, dos cidadãos que compartilham sem pensar, indignam-se sem verificar, odeiam sem conhecer.
Mas atenção, a responsabilidade é também individual. Podemos escolher não ceder à lógica do extremo. Podemos escolher a complexidade em vez da caricatura. Podemos escolher pensar antes de reagir. Porque a democracia não se defende apenas com votos, mas também com palavras — e com o cuidado que temos ao usá-las.
Se porventura queremos um futuro menos tóxico, menos polarizado, menos dominado pelo medo, precisamos de reaprender a falar uns com os outros. E, talvez mais importante ainda, precisamos de reaprender a escutar. Porque só no espaço entre uma palavra justa e um ouvido atento é que a política pode voltar a ser aquilo que deveria sempre ter sido: o exercício nobre de pensar o bem comum.
— João Edgar Silva

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