Existe uma crença do nosso tempo, que de tão repetida, se tornou uma espécie de verdade inquestionável, um autêntico dogma: a de que todos nascemos com direitos! É-nos dito, desde cedo, que temos “direitos humanos”, “direitos naturais”, “direitos individuais”, “direitos fundamentais”... como se esses direitos fossem atributos tão intrínsecos à nossa existência quanto os olhos com que enxergamos, os pulmões com que respiramos, ou a pele que nos cobre o corpo. Contudo, se nos despirmos de romantismos baratos e encararmos a realidade com olhar sóbrio e reflexivo, não tardamos a perceber que os direitos não nascem connosco... têm que ser construídos, garantidos e, acima de tudo, enforçados! A palavra é dura, eu sei, mas necessária, pois a verdade é que não há direito sem dever e, poder intermediário, não há liberdade sem vigilância, não há escolha, sem o peso da consequência!
Os direitos, parecem-me um tipo de ficção conveniente, a sua linguagem é uma das mais belas criações do espírito humano, sem dúvida... fala-nos de dignidade, de respeito mútuo, igualdade, justiça, etc. Mas, como todas as criações humanas, é precisamente isso, uma construção, frágil, vulnerável e dependente. Não é a natureza que nos dá direitos, pois a natureza é-nos indiferente! No mundo natural, a força é a única linguagem compreendida. O leão não pede licença à gazela para a matar, e muito menos a mata “humanamente.” A árvore mais fraca não reclama espaço à mais forte. E mesmo entre os humanos, antes da civilização, quem impunha a sua vontade era o mais forte, o mais inteligente ou mais competente.
Foi somente através de longos processos históricos, de revoluções, guerras, lutas e pactos, que fomos conseguindo erguer a ideia de que “todos têm direitos.” Mas essa ideia, mesmo depois de escrita em declarações universais e constituições, não se sustenta sozinha. Um direito escrito num papel não protege ninguém de coisa nenhuma! Uma folha assinada não impede uma bofetada, um soco, uma facada, uma bala... uma bomba atómica! A justiça proclamada não chega a quem está sozinho, sem que alguém lute por si.
Gostamos de pensar que temos intrinsecamente direito à vida, à liberdade, à expressão... e somos afetos a manter essa ilusão de inerência. Mas esses direitos só existem na medida em que outrem se encontra disposto e, com poder suficiente, para os fazer cumprir. A verdade é esta: não temos direito à vida! Temos uma oportunidade de a manter, enquanto não nos for tirada. Não temos direito à liberdade! Temos momentos em que ela não nos é negada. E respetivamente à liberdade de expressão? Podemos falar, sim, em princípio... até ao momento em que alguém mais forte, ou detentor de mecanismos de poder decide que não devemos mais falar!
Vivemos sob o mito de que o Estado garante os nossos direitos, mas este, como bem sabemos, é uma construção dos homens, sustentado por instituições e força. Se o Estado colapsar, os direitos evaporam-se. Se a polícia se ausentar, as garantias legais tornam-se risíveis. E se o exército se virar contra o seu próprio povo, o papel da constituição servirá para nada mais do que alimentar fogueiras! A História assim nos relembra inúmeros exemplos passados: da Alemanha nazi à União Soviética, do Chile de Pinochet às ditaduras africanas, dos campos de concentração à tortura legalizada americana, em que os direitos, “supostamente invioláveis”, foram violados com a autoridade fria da lei ou a indiferença da multidão!
Afinal de contas, quem faz com os direitos sejam devidamente respeitados e cumpridos? Ora vamos lá por os pontos nos (is) aqui, um direito nada mais é do que uma promessa, e toda promessa, precisa de alguém que a sustente. Por isso, os direitos são sempre enforçados, sempre: seja pelo Estado, pela polícia, por tribunais, organizações internacionais ou, em última instância, por nós mesmos. Numa sociedade funcional, é o aparato estatal que assume esse papel: quando alguém nos agride, a polícia pode intervir; quando nos roubam, o tribunal pode punir; quando somos discriminados, existem mecanismos formais que, em teoria, restauram a justiça...
Contudo, mesmo essas instituições só funcionam porque alguém, em algum lugar, acredita que devem funcionar, e obviamente, tem meios para impor que assim seja. Num país onde a polícia é corrupta, onde os juízes são influenciáveis, onde os governantes legislam apenas em benefício próprio, os direitos transformam-se em cinzas e sombras. Continuam escritos, porventura até celebrados em discursos oficiais ou na televisão, mas em análise final, não passam de palavras vazias!
E há também o outro lado, aquele em que somos nós próprios os guardiões dos nossos direitos: o protesto, a greve ou o voto são apenas algumas formas de procurar enforçar aquilo que nos dizem ser nosso por direito. Porque, no fundo, a liberdade não é dada, é batalhada, conquistada e, reconquistada... todos os dias.
A crença de que temos direitos garantidos por natureza ou por decreto é altamente perigosa, cria complacência, faz-nos acreditar que estamos protegidos só porque vivemos em “democracia”, porque existem câmaras de vigilância nas ruas, porque as forças de autoridade (de alguma forma) nos defenderão se assim for necessário. Mas um direito não exercido é um direito em risco constante! Não há que enganar, um direito que não é defendido é um direito que se perde, eventualmente... Hoje, ainda podemos falar o que pensamos, mas talvez amanhã ou depois, se nos calarmos perante a censura dos outros, pode bem ser que o deixemos de poder fazer.
A liberdade meus caros, morre primeiro no medo, depois no silêncio, e por fim, na indiferença!
A vigilância dos nossos próprios direitos começa no interior de cada um de nós, na consciência crítica, no uso ativo da cidadania, na responsabilidade individual e coletiva de os proteger. Mas é também, inevitavelmente, uma questão de poder e, se não tivermos força: seja ela física, política, institucional ou social, os nossos direitos tornam-se meras ilusões... ilusões reconfortantes, mas inúteis!
Um paradoxo profundo subsiste no coração da nossa conceção moderna de direitos: ao mesmo tempo que os idealizamos como universais, aspiramos a que sejam incondicionais, mas para que sejam universais e incondicionais, precisam de ser aplicados, defendidos, impostos... com condições. E quem impõe, tem poder; quem tem poder, pode abusar dele; assim, o que deveria ser um escudo contra o abuso, pode tornar-se o próprio instrumento de abuso! Curioso, não é?
Não é raro que, em nome dos direitos, se justifiquem sanções, repressões, até guerras! Que se exclua quem pensa diferente, que se silencie quem discorda... Ora pensem lá, quantas vezes se invoca a “defesa da liberdade” para justificar a censura? Quantas vezes se reprime um povo em nome da “ordem democrática?” O direito, que deveria proteger (em particular os mais fracos), pode também ser arma! E isso só nos recorda que os direitos não são virtudes naturais... são sim artefactos do engenho humano, extensão do seu poder e ambição!
Como referi anteriormente, os direitos são uma construção social, não são realidades objetivas, mas convenções que fomos acordando ao longo da História, como quem levanta andaimes invisíveis para sustentar uma casa feita de ideias. Não existem fora da linguagem e da cultura, são doutrinas partilhadas, internalizadas, ensinadas e, acima de tudo, enforçadas.
Um direito não é um dever: ter o direito à liberdade de expressão não significa que sou obrigado a usá-lo. Assim como ter o direito à propriedade não me impõe que possua algo. Os direitos são possibilidades, não obrigações, e o simples facto de existirem não garante a sua eficácia. Eles vivem e sobrevivem através da força, seja ela visível ou latente. Mesmo quando não é aplicada, a sua sombra paira: no medo da sanção, o peso da lei, a força do Estado ou, da moral coletiva que os sustenta. Um direito sem mecanismo de defesa é como uma promessa feita ao vento, bonita, mas efémera. Para que este ponto fique bem assente repetirei novamente, não há direito que se cumpra sem que alguém, algures, esteja disposto a garantir que ele não seja violado: com palavras, com leis, ou, em última instância, com poder! E é precisamente essa tensão entre liberdade e coação que revela a natureza ambígua dos direitos. Estes não são “presentes” dados, mas espaços de possibilidade mantidos pela vigilância contínua da sociedade que os instituiu(...)
Este tipo de assunto é daqueles sobre os quais poderíamos passar horas sem chegar a uma conclusão satisfatória, portanto, tentemos por ora uma espécie de conclusão, desta feita, sobre o valor da fragilidade...
O mais difícil de aceitar é que os direitos não são garantidos, nunca foram, e nunca serão! Por mais bem-intencionados que sejam os discursos ou os tratados. Eles existem na intersecção frágil entre a moral, o poder e a vigilância constante. São como plantas num jardim: precisam de atenção, cuidado e proteção. Podem crescer, florescer, inspirar; mas igualmente podem murchar, ser pisadas, esquecidas; ou ainda, usados para envenenar, matar!
O verdadeiro valor dos direitos não está em serem “naturais,” mas sim em sabermos que são frágeis e, apesar disso, lutarmos por eles! Não porque nos pertencem por herança ao nascimento, não porque o papel os garante, mas porque, conscientes da sua precariedade, escolhemos dar-lhes sentido e edificá-los em nome de uma sociedade melhor.
Assim, talvez o direito mais importante de todos não seja aquele que somente está escrito, mas o de sermos capazes de reconhecer que nenhum direito sobrevive por si só. E que a liberdade, se tiver algum valor real, será sempre uma conquista, e nunca, nunca um presente!
— João Edgar Silva

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