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"Por Detrás das Cores: Sobre o Capitalismo do Orgulho"

No cenário sociopolítico atual as lutas sociais e identitárias, outrora marginalizadas e reprimidas, conquistaram uma visibilidade inédita. Essa visibilidade, porém, está longe de ser sinónimo de emancipação. Visto que, aquilo que hoje se apresenta como apoio ou “solidariedade” institucional é, muitas vezes, uma mise-en-scène coreografada com precisão pelas mãos invisíveis do marketing a mando do capital. No mês em que nos encontramos (junho), denominado Pride Month, esta dinâmica atinge o seu auge — um pouco por todo o lado, mas especialmente no paraíso do capitalismo (América). Bandeiras arco-íris e outras que tais despontam nas montras, logótipos corporativos ganham novas cores e slogans inclusivos invadem campanhas publicitárias... mas, o que se celebra, afinal? A liberdade, a diversidade, o amor? Ou apenas a capacidade do mercado de se adaptar às novas sensibilidades culturais e delas extrair lucro? Como sempre... 

Neste texto, proponho-me realizar uma crítica sobre a apropriação simbólica do Pride Month por parte das grandes marcas e empresas. O meu objetivo não é, de todo, desvalorizar os avanços sociais nem negar a importância da visibilidade LGBT, mas antes, compreender como essa visibilidade se tornou, paradoxalmente, mais um produto a ser vendido! E assim, entramos, no domínio da semiótica capitalista, onde cada cor, cada palavra, cada gesto é cuidadosa e deliberadamente desenhado para produzir um efeito desejado: o da ilusão de compromisso com a causa! 

A mercantilização do simbólico tem um lugar especial no capitalismo tardio, inclusive, de destaque, pois esta variável do capitalismo é das que mais tem capacidade camaleónica de absorver e transformar qualquer discurso ou símbolo que antes lhe fazia frente. Os movimentos de resistência, de contestação e de busca por justiça social tornaram-se alvos de uma lógica de mercado que, ao invés de os confrontar diretamente, logo os absorve, ressignifica e consequentemente neutraliza! E o que antes era subversivo, contracultura, rapidamente se reveste de laivos de moda e vira dimensão estética; e o que era manifestação, luta, converte-se em branding, hashtags patrocinados. A chama da dissidência e da rebeldia são domesticadas, engarrafadas, convertidas em discurso palatável para consumo em massa, e finalmente vendidas como sentido existencial! À medida que a oferta de infinitas “identidades” se transforma num mecanismo compensatório do eu...


A bandeira arco-íris, criada por Gilbert Baker em 1978 como símbolo da diversidade e da dignidade das pessoas LGB, é hoje estampada em produtos de consumo em massa: garrafas de refrigerante, pacotes de bolacha, batatas fritas, marcas de roupa e até automóveis além doutros. Mas aqui não se trata apenas de (visibilidade). Trata-se, acima de tudo, da transmutação do simbólico em mercadoria. O arco-íris, enquanto sinal de pertença e resistência, é convertido num signo vazio de conteúdo político, reduzido à sua potência decorativa e comercial. Já não representa verdadeiramente uma identidade insurgente, mas sim apenas mais uma oportunidade de mercado! 

A semiótica aqui é fundamental: as marcas utilizam signos — palavras, cores, imagens, representações — que remetem à luta LGBT, mas sem, necessariamente, aderirem às suas implicações éticas, sociais ou políticas. Trata-se de um jogo de espelhos, onde o reflexo do compromisso, substitui o compromisso real de princípio ou ação! 

A linguagem publicitária (como todos sabemos) é essencialmente performativa: ela não descreve a realidade, mas tenta criá-la, ou pelo menos, manipulá-la. Quando uma marca, empresa afirma “apoiar a diversidade”, o que está a fazer, na maioria das vezes, é inscrever-se num discurso socialmente aceite pela minoria em questão, e pela maioria que tolera esse discurso, tentando capitalizar sobre uma determinada audiência. Essa performatividade, muitas vezes, nada mais é do que superficial e inócua.


Durante o Pride Month, muitas empresas transformam-se em aliadas temporárias, no entanto, muitas dessas mesmas empresas, fora do palco performativo de Junho, continuam por exemplo a operar em países onde a homossexualidade é criminalizada, sem qualquer posicionamento ou resistência! Algumas, inclusive, financiam campanhas políticas conservadoras que atentam contra os direitos das pessoas LGBT. Outras, internamente, mantêm ambientes corporativos hostis, onde a inclusão é mais um slogan do que propriamente uma prática sincera! 

Este fenómeno é conhecido como pinkwashing ou “rainbowwashing — a estratégia de pintar (de rosa ou arco-íris) uma imagem pública para mascarar práticas contraditórias, senão mesmo, opressivas e ilegais! O que se verifica é uma espécie de teatralização do apoio (performatividade empresarial), onde o mais importante não é transformar o mundo à sua volta, mas sim, convencer o consumidor de que se está do “lado certo” da história. 

Karl Marx, na sua crítica ao fetichismo da mercadoria, já nos havia alertado: no capitalismo, os objetos ganham uma vida própria, uma aura mágica que esconde as relações sociais que os produziram. O mesmo pode ser dito das campanhas de Pride promovidas por estas grandes marcas e empresas. O símbolo do arco-íris constitui-se aqui como um fetiche — objeto encantado que promete empatia, inclusão e progresso — mas que, no fundo, serve para esconder as estruturas que continuam a produzir exclusão, desigualdade e violência! Não se deixem enganar... 

Este fetiche do Pride manifesta-se de múltiplas formas: nas selfies com slogans progressistas, nos produtos “edição limitada” (marketing a funcionar no seu melhor) que se transformam em troféus de virtude, nas campanhas publicitárias com casais do mesmo sexo que apenas servem para gerar engajamento... E tudo isto gera a ilusão dum movimento de mudança. Mas, como diria Debord, vivemos na sociedade do espetáculo, onde a aparência substitui a essência, e a visibilidade, substitui a justiça! 

Vejam, o problema não reside na visibilidade em si, mas na sua instrumentalização, pois quando o Pride é reduzido a um mês de celebrações coloridas, mas desvinculado da história de opressão, agressão e exclusão contínua, desvirtua-se a sua essência e, em última instância, perde-se o seu verdadeiro potencial transformador. E o que que sobra? O que sobra meus amigos? Senão um desfile alegórico de cores que disfarçam as sombras, e, aquilo que estas mais escurecem em nós!


Outro aspeto inquietante deste fenómeno é a substituição da ação política por gestos de consumo. E como estamos em pleno séc. XXI, o consumo como falsa forma de participação não poderia faltar à festa. Comprar uma t-shirt com um arco-íris ou frase de efeito, usar um avatar com as cores do orgulho, partilhar ou comentar um post de uma marca “aliada” — tudo isso é promovido como forma de “apoio” autêntico. O que se oferece ao sujeito não é uma participação ativa na transformação da sociedade, mas uma espécie de indulgência simbólica: mostra-te, junta-te a nós, consome e sentir-te-ás virtuoso! 

Esta lógica reduz o cidadão a consumidor e transforma a política em lifestyle. As empresas encorajam esta forma de engajamento passivo porque é extremamente conveniente: não exige esforço, não exige transformação estrutural, apenas adesão simbólica. O orgulho deixa de ser uma afirmação de existência e resistência, para se tornar numa espécie de acessório de moda simbólico! 

Nesta nova economia da identidade, o que conta não é o sujeito real, com a sua história, a sua dor, a sua luta... mas sim a imagem do sujeito, domesticada e vendável — e, convenhamos meus caros, nunca nada vendeu tanto como uma boa sad story ou o elemento potencial de choque! Neste cenário, a causa LGBT é despolitizada e convertida em nicho de mercado, gerando lucros, enquanto os problemas reais persistem invisibilizados. 

Dentro deste campo, a crítica não pode limitar-se à denúncia, é imperativamente necessário imaginar alternativas possíveis para além do marketing. Como pode o Pride recuperar a sua força política? Como podem as marcas ser responsabilizadas pelas suas contradições? Como podemos, enquanto sociedade, resgatar o sentido da solidariedade que não seja maioritária, ou mesmo só performativa? 

Talvez o primeiro passo seja relembrar que a luta LGBT é contínua, para além de Junho: envolve políticas públicas, educação, saúde, segurança, visibilidade real e representação genuína. E isso implica ouvir vozes genuinamente marginalizadas, não apenas os rostos “aceitáveis” (e os cúmplices úteis de sempre) para as campanhas publicitárias, ou eventos de performatividade. Exige que as empresas se comprometam com práticas inclusivas e transparentes ao longo de todo o ano, e não apenas quando convém ao branding pintar uma imagem cor-de-rosa de si! 

 

Também é fundamental que o consumidor desenvolva um olhar crítico e perguntar, que empresas estou a apoiar? O que fazem para além das campanhas coloridas e slogans bonitos? Quem beneficiará realmente com a compra deste produto supostamente “inclusivo”? O consumo ético não pode cair numa nova categoria de indulgência, mas sim, parte de uma postura reflexiva e comprometida com a possibilidade de um futuro melhor. 

Por fim, é urgente devolver à comunidade LGBT o protagonismo das suas narrativas. Que o Pride não seja um evento meramente simbólico, e muito menos corporativo, mas uma celebração construída por e, para aqueles que continuam (ainda) a viver à margem. Que o arco-íris volte a ser símbolo de resistência, e não apenas de adesão comercial. 

 

Uma conclusão possível: orgulho ou oportunismo? 

O Pride Month deveria ser, acima de tudo, um espaço de memória, de luta, de afirmação coletiva. Deveria recordar-nos que cada direito conquistado foi arrancado com esforço, com dor, com luta e com sangue. E que ainda há muito por conquistar... Quando as empresas transformam esse momento em estratégia de marketing, não só banalizam a sua profundidade histórica como também deturpam o seu significado. 

Quanto a mim, embora eu tenha tendências capitalistas bastante acentuadas, isso não implica que aceite como condição absoluta e, muito menos, encubra ou me coíba de expor a maquinaria simbólica que opera nos bastidores do “apoio” corporativo ao orgulho LGBT (se assim achar necessário). Pois o teatro de fumo e espelhos continua... seduzindo, encantando, acima de tudo, influenciando e vendendo! Mas cabe-nos, enquanto sujeitos críticos, desvelar esses mecanismos e exigir algo mais que palavras bonitas e produtos coloridos. Eu argumentaria que a verdadeira essência do orgulho está muito para além da lógica do mercado... pois o orgulho não se vende e nem se compra, conquista-se!



— João Edgar Silva

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