Atualmente, habitamos um cenário onde as fronteiras entre o real e o imaginário se esbateram, deixando de estar claramente separadas, ou, até mesmo, de poderem ser defendidas através de simples lógica! Na medida em que as emoções procuram lugares de expressão e reconhecimento onde antes se encontrava a biologia, relação direta e vínculo autêntico. E é precisamente nas franjas dessa dissolução simbólica e afetiva que surgem certos fenómenos, podendo à primeira vista parecer inofensivos ou talvez somente excêntricos, mas que, analisados com lente de aumento crítica, revelam camadas profundas de solidão, sofrimento e busca desesperada por sentido! Um desses fenómenos, é o universo dos “bebés reborn” — existente há já várias décadas, mas que recentemente voltou à baila com relativa exposição —, que se desdobra em práticas como simulações de partos, festas de aniversário, e até mesmo, rotinas de cuidado totalmente investidas de afeto e “performatividade hiper-real.”
Mas, o que está verdadeiramente em jogo aqui? De onde nasce esta ilusão partilhada e alimentada? E acima de tudo, o que nos diz sobre a dimensão da alma contemporânea?
Mas, o que está verdadeiramente em jogo aqui? De onde nasce esta ilusão partilhada e alimentada? E acima de tudo, o que nos diz sobre a dimensão da alma contemporânea?
Para nos debruçarmos sobre o nascimento simbólico da ilusão, temos que ter em consideração que bebés reborn são bonecos de vinil, “hiper-realistas”, o que traz à nossa conversa o sociólogo francês Jean Baudrillard e a temática que ele tratou em «Simulacros e Simulação» (1981), na obra, ele define hiper-real como: uma realidade mais real do que o real, em que os signos (imagens, símbolos, representações) já não remetem para uma realidade concreta, mas somente para outros signos, no limite, alertando-nos para a crescente proliferação e aceitação de que o simulacro é a substituição do real pelo seu duplo hiper-realista.
Se fosse vivo, penso que Baudrillard concordaria certamente comigo quando digo que hoje (mais do que nunca) vivemos na era dos simulacros: relações simuladas, intimidades digitais, corpos manipulados por filtros, vidas organizadas como um feed de Instagram, ao sabor do algoritmo.
Tendo em conta que, a boa simulação nunca atua como falso total, mas sim como cópia que procura atribuir valor intrínseco a si mesma, tendo como propósito derradeiro, assimilar o espaço prévio do real consumido, como seu único herdeiro referente!
Tendo em conta que, a boa simulação nunca atua como falso total, mas sim como cópia que procura atribuir valor intrínseco a si mesma, tendo como propósito derradeiro, assimilar o espaço prévio do real consumido, como seu único herdeiro referente!
Neste caso, os bebés reborn são apenas um exemplo particularmente pungente de uma tendência mais vasta: o desejo de viver no conforto emocional e “social” da ilusão. Um mundo de cópias sem original, modelados com uma precisão quase perturbadora para se assemelharem a recém-nascidos humanos: o peso, o cheiro, as suas expressões e, até mesmo as veias e pequenas imperfeições da pele são meticulosamente construídas. Há um esforço técnico admirável na manufatura destes objetos, mas aqui a questão fundamental não é o que são ou como são feitos, mas sim, para que servem... Eles não existem meramente como artefactos decorativos, oh não! São tratados como se fossem reais. Em muitos casos, as pessoas organizam partos fictícios, com vídeos apropriadamente encenados, a simulação de todo um ambiente hospitalar, “médicos” e tudo o que a fantasia necessitar de modo a tornar-se palpável ao olhar alheio. São vestidos, alimentados, levados ao colo e adormecidos com canções de embalar. E claro, não podia faltar a festa de aniversário, convidar familiares, amigos, comprar e oferecer prendas e, tirar fotografias para mais tarde recordar.
Reparem, é possível ver tudo isto como uma espécie de jogo simbólico. Contudo, trata-se de um “jogo” cuja carga emocional é intensa e, por vezes, chegando mesmo a ser insuportável para os donos do bebé... perdão, pais do bebé! Pois este não é um brincar ingénuo, mas uma tentativa de colmatar feridas emocionais profundas, de recuperar o que nunca se teve (a não ser em desejo), ou o que se perdeu (e já não volta mais!) E é aqui que se abre uma ferida coletiva que poucos querem olhar de frente: a solidão emocional da nossa era, o fracasso das relações humanas em oferecer pertença e, a progressiva e constante teatralização dos afetos no quotidiano.
O “aplauso” da fantasia e a cumplicidade social da ilusão nas redes sociais desempenham um papel crucial na legitimação destas práticas. O feed do Instagram ou do TikTok é o palco onde se encena uma maternidade perfeita e eternamente doce. Mas este palco é também um espelho de uma sociedade marcada pela estetização do íntimo, como diagnosticou Byung-Chul Han na sua obra de 2010 «A Sociedade do Cansaço», onde ele fala da pressão constante para performar, mostrar-se feliz, produtivo e realizado. Os reborn, nessa lógica, encaixam-se como provas visuais de um amor idealizado, emocionalmente intenso, mas isento de conflito real.
Estamos meramente diante de um afeto performativo, validado pela reação digital. E o que acontece quando esse afeto é encenado em frente de uma grande massa de seguidores? Bom, o que era privado torna-se um espetáculo de autenticidade simulada, onde o boneco se transforma no médium através do qual a pessoa tenta provar — a si e aos outros — que é digna de amor, que é capaz de cuidar, que é emocionalmente completa.
Há aqui um ponto importante: a ilusão não é apenas individual, é coletiva, mantida por um pacto de silêncio, por uma aceitação tácita de que “não devemos julgar!” Que “cada um sabe de si.” Ou ainda, “o mais importante é ser feliz”. Mas o que acontece à verdade quando o bem-estar imediato se sobrepõe à realidade? Que tipo de subjetividades estamos a formar ao normalizar a fuga da dor por via do escape fantasioso?
Eu argumentaria que vivemos num espaço entre o ventre vazio e a alma ansiosa, é aqui que nos encontramos, e não há como negar que este tempo em que vivemos é “curioso”, para dizer o mínimo... senão vejamos, a maternidade deixou de ser exclusivamente biológica e passou a ser um campo habitável de fantasia, performance e controlo! A mulher moderna (“desconstruída”), despojada da sua função social tradicional, mas ainda marcada pelas exigências do feminino idealizado, encontra-se num verdadeiro limbo: por um lado, é instada a emancipar-se, a ser produtiva, livre e independente; por outro, continua a ser educada e julgada com base na sua capacidade de cuidar, de amar e de, gerar vida.
O bebé reborn entra neste cenário como um simulacro do amor incondicional. Ele não chora verdadeiramente, não rejeita, não cresce, não sofre, muito menos morre! É eterno na sua dependência, e por isso mesmo, eternamente controlável!
No pensamento junguiano, a imagem arquetípica da mãe tem duas faces principais, a “mãe boa”: nutritiva, acolhedora, protetora, fonte de vida e crescimento. Já por sua vez, a “mãe devoradora” é: possessiva, sufocante, incapaz de permitir a autonomia do outro, mantendo o filho numa eterna dependência simbiótica.
Esta segunda face é chamada assim porque, ao invés de permitir o amadurecimento e individuação do filho (conceito-chave na teoria Junguiana), mantém-no “refém”, num perpétuo estado de fusão emocional, impedindo-o de se tornar um ser autónomo. Ela até ama, sim, mas inadequadamente e, de uma forma que nunca liberta!
O bebé reborn seria a personificação de uma criança que nunca escapa à órbita emocional da figura materna. Isso é, simbolicamente, o que este tipo de mãe deseja: um filho que nunca parte, que nunca rompe o vínculo simbiótico, que permanece eternamente no papel de recetor do amor materno... sem autonomia, sem contestação, e claro, sem afastamento!
Ao criar um “bebé” que não tem vida própria, esta pessoa está, inconscientemente, a assumir esse papel, mas é uma inversão subtil e trágica, dado que não se trata aqui de sufocar um outro real, mas de substituir a ausência de amor com um afeto ilusório, onde não há risco de perda real.
O reborn, nesse sentido, não é amado (por quem é), mas por aquilo que representa: um objeto passivo de projeção emocional. E isso aproxima-se perigosamente da lógica do devorar, anular o outro como ser autónomo, para o manter fundido ao desejo materno!
E aqui tocamos na essência ambígua do arquétipo, pois a mãe devoradora acredita realmente que está a amar, mas é um amor que não reconhece a alteridade do outro, um amor que quer manter o objeto num estado de dependência perpétua para evitar o confronto com a conceção de perda, com o vazio, com o real... esse elemento inexorável, sufocante e por vezes, absolutamente insuportável!
Esse objeto representa não o amor materno verdadeiro, mas o amor narcísico, onde o outro (o “bebé”) existe apenas como prolongamento da carência do eu, na medida em que não é (um amor que vê), mas um amor (que usa para preencher a falha!)
E tentando chegar a uma conclusão desta ligação, poderíamos até argumentar que o bebé reborn pode ser lido como uma encarnação simbólica da função da mãe devoradora, não no sentido tradicional da relação mãe-filho, mas como manifestação do desejo inconsciente de reter eternamente um vínculo que nunca se teve, ou que foi interrompido com dor! Essa substituição do filho real por um simulacro é uma forma de tentar viver a maternidade sem a possibilidade de fracasso, e por isso mesmo, é também uma maternidade sem alteridade, sem individuação, sem verdade... em suma, sem futuro!
A adesão emocional ao (universo reborn) encontra raízes profundas em experiências de perda, frustração e rejeição! Para quem lida diariamente com a impotência da infertilidade, quem já sofreu uma perda gestacional, indo até traumas de infância, rejeições familiares ou simplesmente um vazio relacional crónico... o reborn oferece um tipo de maternidade sem risco. Mas será amor? Ou somente o teatro daquilo que se desejava ter sentido, mas nunca se teve?
A festa de aniversário do boneco é, neste contexto, uma celebração não da vida do outro, mas do desejo próprio. Não é o boneco que faz anos, é o afeto encenado que se festeja, a confirmação de que se ama, de que se é capaz de amar, mesmo que a materialização desse amor seja dirigida a um exemplar inerte, mudo, artificial! É uma forma de dizer ao mundo (e a si mesma) “eu sou uma boa mãe”, mesmo que nunca tenha tido um filho de verdade.
A festa de aniversário do boneco é, neste contexto, uma celebração não da vida do outro, mas do desejo próprio. Não é o boneco que faz anos, é o afeto encenado que se festeja, a confirmação de que se ama, de que se é capaz de amar, mesmo que a materialização desse amor seja dirigida a um exemplar inerte, mudo, artificial! É uma forma de dizer ao mundo (e a si mesma) “eu sou uma boa mãe”, mesmo que nunca tenha tido um filho de verdade.
Também podemos dizer que este fenómeno ecoa o conceito de “objeto transicional” de Winnicott, para o psicanalista, os bebés desenvolvem objetos transicionais (como peluches ou mantas) que os ajudam a fazer a ponte entre o mundo interno (fantasia), e o mundo externo (realidade). No caso dos reborn, podemos ver o seu uso como um regresso a esse espaço transicional, só que num contexto adulto e prolongado, onde o objeto deixa de ser um instrumento de passagem e, se torna um substituto permanente da realidade.
Por sua vez, Julia Kristeva, ao falar sobre o (abjeto), refere-se àquilo que é expulso do corpo, mas que permanece como presença perturbadora: sangue, placenta, morte, dor. A maternidade real está cheia desses elementos abjetos. O reborn, por outro lado, expulsa tudo o que é impuro ou instável da experiência materna. O corpo de vinil é o corpo que não sangra, que não morre, que não exige nada que não seja desejado. É a negação do abjeto — e, por isso mesmo, é também a negação do humano!
Também é essencial recorrermos ao pensamento de Melanie Klein, que via a maternidade não apenas como uma função biológica, mas como uma dinâmica psíquica complexa, marcada por ambivalências: amor e ódio, fusão e separação, idealização e destruição. E num mundo em que a maternidade foi em parte dessacralizada e instrumentalizada — seja como imposição cultural, seja como escolha pessoal ou mesmo estética —, muitas mulheres sentem que perderam o direito de falhar, de hesitar, de não corresponder ao ideal materno. Os reborn são então o campo onde o amor pode ser vivido sem frustração. Uma vez que não há birras. Não há doenças. Não há adolescência. Não há morte... É a eternização do afeto sob controlo absoluto!
O homem também entra nesta dinâmica que foge ao convencional, pois a presença de bebés reborn numa família levanta questões curiosas sobre o papel de todos os membros da família...
Vejamos, múltiplos papéis possíveis podem estar a ser desempenhados aqui, como por exemplo o “cúmplice ou o solidário”. Existem homens que aceitam a presença de bebés reborn por empatia e amor à sua companheira. Se a mulher sofreu uma perda ou tem uma ligação emocional forte ao reborn, ele pode ver o apoio como um ato de cuidado, de respeito pela dor ou necessidade dela. A sua motivação será a de agradar, mostrar companheirismo e empatia. Sentindo predominante amor e solidariedade — mesmo que misturado com alguma confusão.
Também se poderá mostrar “indiferente ou distante”, aceitando a situação por desprendimento, não interferindo, como igualmente não participando ativamente. Podendo ver toda a situação como uma excentricidade inofensiva, ou, simplesmente para tentar evitar conflitos. A motivação principal neste caso será evitar o confronto e preservar a paz doméstica. Sempre meio desconectado da situação, adotando uma tolerância passiva.
Noutros casos, o homem pode ser o “resistente ou desconfortável”, sentindo um incômodo profundo e até repulsa à presença do dito “bebé”, isto por o ver como um objeto de (fuga da realidade) ou, um (bloqueio ao crescimento emocional) da parceira. A motivação aqui vai-se focar na preocupação com saúde mental ou sentimento de substituição simbólica. O seu estado sentimental acerca da situação passará por incómodo, rejeição ou frustração.
E ainda temos (se calhar) o mais importante, o parceiro “ausente emocionalmente”, um cenário onde o homem aceita o bebé reborn como forma de evitar responsabilidades reais. Deixando que a parceira “cuide” de um ser que não exige nada (dele) de facto, escapando assim à paternidade autêntica, no que toca a sustento, proteção, saúde ou educação. Motivado pela fuga à responsabilidade e evitação de vínculos reais, o sentimento preponderante que procura é de alívio ilusório e alienação.
A aceitação ou rejeição de um “bebé” destes pode ser sintomática do estado emocional da relação conjugal. Se o homem apoia e participa, pode haver união empática. Por outro lado, se o homem se afasta, pode haver uma brecha emocional ou incompreensão profunda. Já se ambos usam o reborn como substituto de algo perdido ou inalcançável, talvez estejam a viver um luto simbólico em conjunto, ou a evitar encarar uma dor real!
Na sua maioria, existe uma dialética entre “função simbólica e fuga”. Aceitar a presença de um reborn não significa, por si só, fuga à responsabilidade, pode ser um gesto de amor ou uma tentativa de reconstrução emocional. Por outro lado, pode também esconder evitamentos, seja da parentalidade real, do luto não resolvido ou de conflitos na relação.
O essencial neste fenómeno, é que revela sempre algo por trás da encenação, algo de nós, profundo: um desejo, uma ausência, uma dor! O papel do homem neste tipo de família deve ser observado no contexto emocional mais amplo da relação. Se ele age apenas para agradar (mas sem entender) corre o risco de viver em negação. Se aceita para fugir de obrigações reais, está somente a projetar o seu próprio vazio. Já se compreende o porquê, e participa de forma empática, pode até encontrar ali uma forma de ligação profunda e, um terreno fértil para trabalhar em conjunto no processo de uma possível “cura”.
Na sua maioria, existe uma dialética entre “função simbólica e fuga”. Aceitar a presença de um reborn não significa, por si só, fuga à responsabilidade, pode ser um gesto de amor ou uma tentativa de reconstrução emocional. Por outro lado, pode também esconder evitamentos, seja da parentalidade real, do luto não resolvido ou de conflitos na relação.
O essencial neste fenómeno, é que revela sempre algo por trás da encenação, algo de nós, profundo: um desejo, uma ausência, uma dor! O papel do homem neste tipo de família deve ser observado no contexto emocional mais amplo da relação. Se ele age apenas para agradar (mas sem entender) corre o risco de viver em negação. Se aceita para fugir de obrigações reais, está somente a projetar o seu próprio vazio. Já se compreende o porquê, e participa de forma empática, pode até encontrar ali uma forma de ligação profunda e, um terreno fértil para trabalhar em conjunto no processo de uma possível “cura”.
Seria fácil (mas igualmente raso) apontar o dedo a estas práticas e rotulá-las de patológicas, ou até risíveis. No entanto, a adesão e cumplicidade social crescente a estas encenações revela uma dinâmica inquietante. As redes sociais transformaram-se no palco perfeito para esta “dramaturgia do afeto.” Likes, comentários carinhosos, partilhas entusiásticas... tudo isso contribui para manter a ilusão de que isto é completamente normal, legítimo e, até inspirador. As pessoas alimentam-se mutuamente de fantasias que, no fundo, escondem uma fragilidade ontológica: já não sabemos o que é verdadeiramente real! No mínimo, temos grande dificuldade em separar o real da ilusão!
Quando a dor é profunda demais para ser enfrentada, ou quando se torna insuportável, constroem-se forçosamente narrativas paralelas (“coping mecahanisms!) Mas quando essa narrativa é aplaudida em vez de questionada, o risco passa por nos tornarmos prisioneiros da encenação. Quantas pessoas vivem hoje em dia mais ligadas a objetos simbólicos do que a pessoas reais? Quantas preferem a previsibilidade emocional de um reborn (ou outra coisa qualquer) à complexidade das relações humanas verdadeiras? Estamos, aos poucos, a substituir o outro por uma réplica controlável, que nunca nos desafia, nunca nos contradiz, nunca nos desilude, nunca nos abandona... e que bem lá no fundo, sabemos que não nos completa, apenas nos entretém.
A necessidade de afeto é universal, mas quando a realidade não corresponde, as pessoas constroem realidades alternativas. Estas fantasias podem funcionar como válvulas de escape temporárias, mas não curam. Pelo contrário, perpetuam o afastamento do real. Um reborn pode parecer uma solução para a dor de não ter um filho ou para a solidão de um quotidiano vazio. Mas essa solução é, na verdade, uma prisão emocional, onde o amor é projetado sobre um espelho e não sobre um outro vivo, livre, falível e pelo qual somos verdadeiramente responsáveis. O amor verdadeiro, envolve deceção, dor, frustração! E, no entanto, é aí que ele se torna real, só aí... Mas quem sabe, talvez estejamos a caminhar para um tempo em que preferimos a ilusão doce à verdade difícil. Onde se ama não quem está vivo, mas quem nunca poderá falhar-nos, causar dor!
E talvez o maior ato de coragem hoje, mais revolucionário, seja mesmo este: amar alguém que pode dececionar-nos, frustrar-nos, que pode crescer e já não precisar de nós, deixar-nos... até mesmo, morrer-nos nos braços! E mesmo assim, apesar disso, amar... Amar com falhas, com medo, com dor. E ainda assim, amar... Aprendendo que uma relação de amor é algo se constrói, por vezes nos destrói, e volta a reconstruir novamente. E é isso que nos torna verdadeiramente humanos.
Reparem, este texto não é um ataque a quem usa reborns, não se trata de julgar, mas sim de tentar compreender. Pois eu tenho plena consciência que a dor é real. As perdas são reais. A solidão é real. Em muitos casos, o reborn é uma tentativa de sobrevivência psíquica. E que o problema por vezes nem está propriamente no indivíduo — está na sociedade que não sabe escutar a sua dor adequadamente sem a encobrir com mecanismos de fantasia!
A pergunta essencial que se impõe é: que tipo de cultura afetiva estamos a construir? Será que queremos realmente substituir relações vivas por afetos embalados em vinil e “decorados” com likes? E afinal, o que diz este fenómeno sobre nós?
Acreditem quando digo que este ensaio não pretende condenar nem ridicularizar. Pretende, antes, levantar questões pertinentes... O que nos leva a preferir o amor encenado ao amor arriscado? O que revela o facto de organizarmos festas para bonecos, enquanto relações reais se desfazem à nossa volta por falta de cuidado? Porque é que o afeto, hoje, parece precisar tanto de um palco e de espectadores para existir?
No fundo, e, se apelamos a nossa sinceridade interior, sabemos bem que este fenómeno fala menos sobre bonecos e mais sobre a falência afetiva do indivíduo contemporâneo! Este, é por natureza um ser em constante decadência: os seus valores são ideais que nunca consegue plenamente alcançar, os seus sonhos saem sempre logrados perante o seu desejo voraz, e por mais que este se esforce, nunca jamais consegue preencher verdadeiramente a “falta!” E uma sociedade onde as pessoas se sentem mais seguras a cuidar de um boneco do que a amar um ser humano, é uma sociedade em (sofrimento controlado!) Um sofrimento que precisa ser nomeado, ouvido, acolhido. E não alimentado com o silêncio complacente de familiares compassivos ou seguidores úteis.
Estes “bebés” e toda a simulação e encenação que ocorre à sua volta são sintomas, sintomas de uma dor profunda que não encontra lugar na linguagem comum. Uma dor que talvez só se exprima neste gesto desesperado de tentar recriar uma ligação, o próprio amor, mesmo que seja com um corpo de vinil. E a nossa tarefa, enquanto sociedade, talvez seja menos julgar e mais perguntar: como chegámos aqui? Sobretudo, como saímos daqui?
Penso que importa terminar este ensaio com um possível apelo à empatia, mas igualmente, à lucidez. Como referi anteriormente, não se trata de condenar quem encontra nos bebés reborn uma forma de lidar com a dor. Pois para lá do espetáculo, muitas vezes a perda, a dor, a solidão são reais! Mas também o é, o risco de, ao normalizar a fuga simbólica, estejamos a encorajar uma sociedade onde o afeto se vive cada vez mais no mundo da fantasia, e cada vez menos no mundo do encontro e do toque.
O desafio, parece-me, duplo: por um lado, acolher a dor sem julgamento; por outro, resistir à tentação de nos perdermos na ilusão. O verdadeiro amor, aquele que cura e transforma, exige de nós presença, risco, falência e reconstrução. Exige o outro na sua inteireza imperfeita… não o outro moldado na decadência do nosso vazio!
Disto isto, não esperem de mim respostas mágicas ou iluminadas meus caros, não possuo esses dons! O meu papel aqui é somente diagnosticar e, plantar sementes de dúvida e reflexão na cabeça do meu leitor.
— João Edgar Silva
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