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"A Leitura Como Transformação e Não Como Acumulação: A Importância da Qualidade Sobre a Quantidade"


Mais importante do que perguntar: "Quantos livros leste no mês passado?" Deve-se perguntar: "Que livros andas a ler?" Sabendo de antemão que, ler muito não significa absolutamente NADA!


No mundo contemporâneo, onde a quantidade e a velocidade são glorificadas, e em que o ato de “ter” é frequentemente valorizado acima do que constitui “ser”, a leitura: uma atividade que exige tempo, entrega e reflexão profundida, muitas vezes torna-se vítima dessa mentalidade apressada e influenciável das métricas sociais. Lembrando que, essas métricas, na maior parte das vezes são um elemento de promoção e validação, raramente o são de realização pessoal, pois essa não é quantificável, e sim qualitativa.

O conceito de leitura como uma “maratona” — onde o leitor busca percorrer o maior número de páginas possível num período de tempo reduzido, ou ler o maior número de livros num mês, ano... — tem vindo a ganhar tração nas redes sociais, particularmente com o aumento de desafios literários (criados por influencers e plataformas digitais) que contabilizam livros lidos, quase como se de troféus exibíveis numa estante virtual se tratasse.
Contudo, tenho para mim outra noção relativamente à leitura, pois acredito que é crucial reavaliar a nossa relação pessoal com os livros e, diria mesmo, com a leitura de um modo geral. Dado que, a qualidade daquilo que lemos e a profundidade da experiência literária, são infinitamente mais significativas do que a quantidade de livros que acumulamos numa foto ou numa plataforma de livros!

Ler não deve ser (na opinião deste autor) uma atividade centrada na acumulação, mas sim na transformação. Quando lemos um bom livro — um texto que desafia as nossas ideias pré-concebidas, que nos expõe a novas perspetivas, nos ajuda a compreender melhor o mundo e, até a nós próprios —, estamos a investir no nosso crescimento pessoal, seja em termos académicos, profissionais, intelectuais, sociais etc.

Como enfatizava Mortimer J. Adler no seu clássico de 1972 «Como Ler Livros», a leitura não é um ato passivo nem rápido, pelo contrário, é um processo de interação com o texto, ativo e profundamente dialógico, em que o leitor tem que chegar a um acordo com o autor.
Ele defende que o leitor deve engajar-se com o texto, questionando, interpretando e dialogando com as ideias do autor. A leitura, transforma-se, ora pois, numa arte de diálogo entre autor-leitor/leitor-autor. Ler bem exige reflexão, questionamento e, acima de tudo, tempo para digerir e assimilar as ideias apresentadas.

A verdade é que ler um bom livro pode moldar completamente a nossa visão do mundo, até a maneira como nos comportamos daí em diante e em quem nos tornamos, quer seja pessoal, social, política ou filosoficamente. Obras como «Crime e Castigo» (1866) de Dostoiévski, «A Morte de Ivan Ilitch» (1886) de Tolstói ou «A Metamorfose» (1915) de Kafka, não apenas exploram questões filosóficas profundas, mas também mergulham no complexo mundo interior do ser humano, desafiando-nos a refletir acerca de conceitos como a culpa, moralidade ou redenção. De igual forma, um ensaio como «A Genealogia da Moral» (1887) de Nietzsche, pode desconstruir crenças sociais, religiosas... que tomávamos como certas, incentivando-nos a questionar os alicerces da nossa ética e cultura. Mesmo um «Orgulho e Preconceito» (1813) de Jane Austen, é muito mais do que uma história de amor... as suas páginas revelam um convite ao autoconhecimento e à reflexão sobre os preconceitos que moldam as nossas relações: ao acompanhar as experiências de Elizabeth Bennet e Mr. Darcy, somos desafiados a questionar julgamentos precipitados e, a enxergar além das simples (e tão enganadoras) aparências. A narrativa inteligente de Austen inspira empatia e crítica social, ensinando a importância de valorizar o respeito e a honestidade nas interações humanas, promovendo transformações internas e uma visão mais ampla e compassiva do mundo.

Estes livros, exigem de nós algo mais do que uma mera leitura superficial, requerem introspeção e um confronto honesto com as nossas próprias ideias... desconstruindo-as e voltando a reconstruir, de maneira que nada fique como era.
A questão que se impõe é, está o leitor preparado para isso?

Falemos dum perigo bem real no que toca à leitura, causado pela obsessão de querer ler muitos livros, que por sua vez, pode levar-nos a cair na armadilha da superficialidade! Como argumenta o filósofo alemão Arthur Schopenhauer em «A Arte de Saber Escrever» (1890), no capítulo (Sobre a Leitura e os Livros): “...quanto mais se lê, menor a quantidade de marcas deixadas no espírito pelo que foi lido...”
E ainda na mesma página lê-se: “...se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido não cria raízes e se perde em grande parte.”

Ao ler a obra percebemos que o autor, entre outras coisas, nos alerta sobre a leitura excessiva e indiscriminada, podendo sufocar o pensamento crítico e criativo, tornando o leitor numa mera máquina de leitura, incapaz de processar verdadeiramente o que lê, e até, podendo transformá-lo num imitador banal!
Ainda no mesmo capítulo refere: “Seria bom comprar livros se fosse possível comprar, junto com eles, o tempo para lê-los, mas é comum confundir a compra dos livros com a assimilação do seu conteúdo.” E ainda: “Para ler o que é bom uma condição é não ler o que é ruim, pois a vida é curta, o tempo e a energia são limitados.”
Ou seja, Schopenhauer sugere que o tempo dedicado à leitura deve ser equilibrado com o tempo dedicado à reflexão, e não substituir o pensamento próprio pela leitura, pois é, em última instância e, precisamente através do processo dessa reflexão, que as ideias realmente ganham forma e sentido.

Neste aspecto, a leitura incessante de obras que não nos desafiam, ou que têm pouco valor literário ou intelectual, pode sim ser prejudicial. Ler livros que apenas confirmam as nossas crenças, que não apresentam complexidade narrativa ou sequer estilística, podem contribuir para um empobrecimento da experiência (vista como um todo.) A repetição de conteúdos triviais, muitas vezes associados a uma produção literária gritantemente comercial, massificada e artificialmente induzida, pode levar ao que Umberto Eco, no ensaio «Não Contem com o Fim do Livro» (2010), denomina de “consumo de livros descartáveis”, isto é, obras que não deixam marcas significativas nem transformam o leitor.

Escolher bem, é definitivamente mais importante do que ler muito! Portanto, a questão maior não é “quantos livros devo ler?”, mas sim, “quais livros devo ler?”. Aqui, a qualidade assume o papel central, proposital. Escolher bem os livros que lemos, significa procurar obras que acrescentem valor às nossas vidas, que ampliem os nossos horizontes e nos desafiem a pensar de forma mais profunda e engajada com nós próprios e com o mundo à nossa volta. Clássicos como «A Montanha Mágica» (1924) de Thomas Mann, ou «Em Busca do Tempo Perdido» (1913-1927) de Marcel Proust não são leituras rápidas e, muito menos fáceis... são jornadas literárias, exigentes, mas extremamente recompensadoras, pois carregam consigo um potencial transformador incomparável, que somente o leitor mais perseverante se permite alcançar.

Além disso, escolher bem implica respeitar os nossos interesses e necessidades intelectuais em momentos específicos da vida. Um jovem pode encontrar na poesia de Fernando Pessoa ou na filosofia de Jean-Paul Sartre uma identificação com os seus mais profundos questionamentos existenciais. Enquanto um adulto, pode preferir a profundidade histórica de um livro como «Sapiens» (2011), de Yuval Noah Harari, de modo a tentar compreender um pouco melhor o lugar do ser humano no universo.

A relação com os livros é uma relação muito íntima, eles vão connosco para todo o lado, dentro da mochila, na carteira, no bolso, acompanham-nos para a escola, quando viajamos de metro, sentam-se nas nossas mãos no banco do parque, dormem ao nosso lado na mesinha de cabeceira... sempre por perto, como um melhor amigo. Os livros não são apenas instrumentos de conhecimento ou prazer lúdico, são também portais para experiências emocionais e espirituais transformadoras. Um bom livro pode confortar, inspirar e por vezes, atrevo-me a dizer, curar! Oh sim... como diz Borges no (Poemas dos Dons) «O Fazedor» (1984): “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca eterna.” Esta frase, contrariamente ao que o leitor possa pensar, não celebra a acumulação de livros, mas sim a relação íntima que desenvolvemos com eles, uma relação que só é possível quando lemos com genuína atenção, profundidade e entrega.

Por isso, ao invés de nos concentrarmos em atingir metas numéricas de leitura, para que outros no valorizem, devemos sim valorizar a experiência qualitativa da leitura. Devemos dar-nos ao luxo de reler os livros que amamos, de mergulhar em textos complexos que exigem tempo para serem compreendidos e devidamente digeridos e, permitir que as palavras ressoem em nós antes de passarmos para a próxima obra. Pois se pouco ou nada fica daquilo que lemos, é quase como se nos tivéssemos traído a nós próprios!

Uma espécie de conclusão...
Ler bons livros é um ato de resistência num mundo que valoriza a pressa, números e a facilidade. É um gesto que nos permite desacelerar, pensar e crescer. Ao privilegiar a qualidade sobre a quantidade, rejeitamos a ideia de que a leitura é apenas mais uma corrida e, ao permitirmo-nos abraçar o seu verdadeiro propósito, enriquecemos a nossa vida interior, ampliamos os nossos horizontes e transformamo-nos enquanto indivíduos.
Já o disse, mas volto a reiterar, desse modo, quando olharmos para a nossa estante de livros (maior ou menor), que ela não seja somente um monumento à quantidade ou à tendência do momento, mas sim, um testemunho da profundidade das experiências que vivemos através das páginas que folheamos. Porque no fim, não é o número de livros que lemos que importa, mas sim o que deles bebemos, e de que forma deixam em nós marcas duradouras e nos transformam.

E parafraseando o saudoso Walter Benjamin deixo a ideia final: “Colecionamos livros porque acreditamos que os preservaremos, quando na realidade, são os livros que nos preservarão a nós.”
Ensaio «Unpacking My Library» (1931)


João Edgar Silva

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