34 “«Oh!», disse eu então, «pai, que sons são estes?»
E como perguntava, eis outra se erga
36 dizendo «Amai os de quem mal houvestes.»
Diz o bom mestre: «Este círculo verga
38 culpas da inveja e por isso são
feitas de amor as cordas dessa verga.
(…)
52 Não creio que na terra em tão atroz
dureza alguém não fosse compungido
54 por compaixão dos que vi la após;
(...)
67 E tal o sol que aos cegos não vier,
assim às sombras de que falo agora
69 a luz do céu com elas nada quer;
que arame suas pálpebras escora,
71 e cose, qual falcão que se asselvage,
porque ele, assim, quieto não demora.
(...)
82 do outro lado, às pias sombras, só de
tanto ser comprimida essa costura
84 horrenda, às faces choro a fio acode.”
— Dante Alighieri
«A Divina Comédia»
Excerto de o Purgatório: Canto XIII
Ainda de uma era longínqua e obscura, emerge a Magnum Opus de Dante Alighieri, «A Divina Comédia». Sob a égide duma copiosa torrente poética, Dante erige um edifício literário que transcende as fronteiras do tempo, alcançando a memória coletiva do ser, como um farol de sabedoria que desvela o mais recôndito da alma humana.
No intricado mosaico composto por trinta e três cantos, divididos em três partes — sendo que um deles serve de introdução ao poema. No poema, o Inferno é descrito com nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra —, é onde se encontra esta epopeia absolutamente inesquecível. Nesta, o poeta italiano tece uma sinfonia de dualidades: o divino e o profano, o celestial e o infernal, o amor e o pecado. E em que o folhear de cada página ressoa no nosso interior, uma vez que a jornada de Dante se apresenta como uma verdadeira peregrinação metafísica, um exame reflexivo e extremamente íntimo da condição humana, tanto no âmbito do divino, como do mundano.
E é pisando o Inferno que iniciamos a nossa caminhada pelo mundo de Dante. Onde na parte inicial da obra, nos centramos no pecado, mais precisamente, na expiação (sacrifício), através da busca interior... Aí, Dante desenha a topografia do inferno melhor do que ninguém... Alegoricamente bem escrito, o texto usa o conceito medieval de Inferno (como referido abaixo) para passar um cenário imagético rico, impulsionado pelo poeta romano Virgílio.
Neste «Inferno», Dante imerge-nos na voragem do pecado, andamos em círculos, pois a organização do inferno foi baseada na teoria medieval de que o universo era formado por círculos concêntricos. Tornando-se o inferno mais profundo a cada círculo, pois os pecados são de natureza mais gravosa! Estes círculos que delineiam as transgressões humanas, e, ao fazê-lo, questiona não apenas a natureza do mal, mas a própria essência do livre-arbítrio e da responsabilidade moral. Na medida em que as almas atormentadas, são também, a medida da nossa própria consciência, e cada lamento repercute-se num eco latente no abismo interior de cada leitor.
Em contraste, o «Purgatório» revela-se como um limiar de redenção, um purgatório íntimo, em que as almas, através de purificações e expiações, ascendem à luz da redenção. O poeta, nesse aspeto, explora a esperança como um feixe de luz a guiar a alma errante em direção à transcendência, ilustrando a jornada espiritual que cada ser humano enfrenta na sua busca por significado.
E por fim, já no «Paraíso», a contemplação das esferas concêntricas celestiais desdobra-se como a última estação desta longa viagem. Aqui, Dante desvenda os véus que ocultam os mistérios divinos, enfrentando o inefável com a poesia, qual lança soteriológica... posto que a união com o divino transcende a linguagem e, no êxtase da visão beatífica, o poeta proclama a sinfonia celestial que ressoa na harmonia cósmica.
Por todos estes elementos, podemos argumentar que «A Divina Comédia» não é meramente uma narrativa poética, mas um convite à introspecção, um convite que, cada leitor que na obra pega, se verá obrigado a percorrer, por entre os corredores do seu próprio inferno, escalar as encostas do seu purgatório interior e, por fim (e somente se tiver sido sincero consigo mesmo), contemplar as estrelas do seu paraíso pessoal. Uma vez que, Dante ergue um espelho inesquivável diante da humanidade, refletindo não apenas os tormentos e triunfos individuais, mas a própria condição universal da existência humana na sua eterna busca pela transcendência.
«A Divina Comédia» constitui-se assim como uma das, senão mesmo, "a obra" fundamental da civilização ocidental posterior à era grega, de certa forma, podemos até mesmo argumentar que os seus versos equivalem a uma nova escritura sagrada (desculpem-me a blasfémia)... ou se preferimos, um novo/outro tipo de apocalipse, uma vez que, o que Dante nos traz é um livro de revelação, que canta através dos tempos a jornada da existência humana, expondo a consciência do ser, dos seus vícios e virtudes... Mostrando-nos que o ser (como diria Nietzsche), no fim de contas, mais nada é do que: "Humano, demasiado humano."
— João Edgar Silva
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