«A Substância» (2024), filme protagonizado por Demi Moore, Margaret Qualley e dirigido por Coralie Fargeat foi um dos grandes nomeados aos Óscares deste ano. Para ser sincero, não é meu apanágio assistir “filmes de óscares”, muitos menos enquanto ainda pululam nas tendências, com toda a gente a dar as suas opiniões e contraopiniões a torto e a direito. Contudo, o filme surgiu-me à frente na minha plataforma de streaming, e por curiosidade, lá decidi assistir...
Bom, posso definitivamente confessar que foi um erro!
O filme inicia com uma premissa relativamente interessante, a crítica social à estrutura patriarcal e à mercantilização do corpo feminino que permeia a indústria televisiva de entretenimento, esse autêntico “mercado da beleza”, fomentador de padrões de beleza irreais, ainda altamente controlado por uma lógica machista e patriarcal, onde a obsessão perene pela juventude de um ideal que beira o quimérico, se converte num espelho distorcido da sociedade contemporânea.
Nesta curta abertura, o filme parece lançar mão de uma análise com tendência a aprofundar... explorando o machismo institucionalizado, o peso do etarismo, a incessante pressão estética que as mulheres enfrentam, também como, a não aceitação de si mesmo (neste caso, a eterna insegurança feminina) e, em última instância, até que ponto estamos dispostos a ir para alcançar aquilo que verdadeiramente desejamos. Tudo isto, conduzindo a protagonista principal (Demi Moore) a uma espiral vertiginosa de obsessão, loucura, decadência e autodestruição!
Durante os primeiros trinta e poucos minutos a ideia central encontra terreno fértil e promissor, cheira-se no ar a promessa duma reflexão crítica contundente, uma espécie de preâmbulo filosófico, onde os dilemas sociais e existenciais se anunciam com potencial para subverter os paradigmas da manipulação e mecanismos de poder. No entanto, à medida que o enredo se desenrola, revela-se uma discrepância inquietante entre a proposta inicial e a execução narrativa. Após uma hora de filme, já nos questionamos se o que estamos a ver conduzirá a uma conclusão que valha a pena o nosso tempo. Pois o que se segue a partir daí, é uma sucessão de cenas desprovidas de continuidade narrativa e de um propósito maior coerente, transformando o que poderia ter sido uma meditação profunda sobre a condição feminina, numa mera sucessão de “gimmicks” visuais, gore gratuito e sexualização excessiva!
A obsessão pelo espetáculo estético parece ter ofuscado o potencial de uma boa reflexão e, por conseguinte, o sacrifício a que se submete a figura feminina na busca desesperada por uma juventude inalcançável.
No que toca ao emprego de elementos cinematográficos: agulhas, sangue, gore e nudez gratuitos e explícitos, estes, longe de surpreender, adentram num território de vulgaridade e excessos que mais parecem um mero artifício para captar a atenção imediata do espectador, do que uma ferramenta de reforço para avançar a narrativa da trama. Pessoalmente, esses nem são elementos que me choquem, de todo, mas a sua sobre-exposição facilmente se torna vulgar, excessiva e acima de tudo, desnecessária! Se isto é o que Hollywood tem para oferecer de melhor, é muito pouco! Ainda pra mais, quando se fala num filme de “Óscares”.
A técnica, por si só, não redime a narrativa vazia, e o choque visual peca pelo seu abuso, mostrando-se incapaz de redimir seja o que for... Não senhor diretor, os efeitos especiais não bastam!
Talvez o maior pecado se encontra na narrativa que nos é apresentada, que propõe, em teoria, uma dualidade ontológica: a ideia de que as duas protagonistas representam facetas da mesma essência, simbolizando a luta interna e a fragmentação identitária impostas por uma sociedade que valoriza a aparência, em detrimento do SER, contudo, esta conexão metafísica é explorada de uma forma bastante empobrecida, exempli gratia, em vez de aprofundar a tensão entre o real e o ideal, o filme deixa escapar a oportunidade de desenvolver uma verdadeira crítica existencial, optando por cenas que se perdem em cortes abruptos, movimentos de câmara por vezes nauseantes e, uma insistência absurda no choque visual que, paradoxalmente, desvirtua a mensagem principal. Fazendo com que, aos poucos e poucos, qualquer esperança que ainda pudéssemos ter em relação ao filme, seja completamente chacinada, a cada nova cena com cheiro de desapontamento!
A suposta “conexão” entre as protagonistas falha redondamente! Ao tentar através de uma abordagem dualista representar duas faces de uma mesma alma, que nunca se chega a materializar. A “voz” da substância, que insiste em afirmar (uma e outra e outra vez) a unidade ontológica entre as duas, carece de uma gênese que estabeleça uma simbiose verdadeira: em vez disso, assistimos a uma trajetória paralela, mas desarticulada, que parece nunca se cruzar adequadamente, onde a ausência de um elo narrativo torna palpável precisamente o contrário, a (desconexão) entre elas!
Porventura e, para que a intenção inicial do filme funcionasse eficazmente, uma suposta conexão deveria ter sido estabelecida ao início, podendo, por exemplo, mais adiante, explorar a narrativa de uma rutura entre elas, devido a um possível comportamento paroxístico originado por uma das partes...
Se o filme pretendia ser de alguma forma “assustador”, falha no seu propósito! Já que não nos consegue trazer a sensação de “assombro” necessária, desconsiderando que, o terror, na sua essência, é um estado existencial que transcende o mero espetáculo da violência e bons efeitos especiais.
Ademais, se a intenção era antes tecer uma sátira sobre os mecanismos do machismo e a imposição de padrões irreais de beleza, então também falha, e de forma ainda mais categórica, tendo em conta que, o seu sentido narrativo não é contínuo ou, sequer forte o suficiente para se suster durante o filme, de modo a agarrar o espetador.
A abordagem da questão relacionada à busca pelo corpo perfeito, a juventude eterna e, o preço que se está disposto a pagar para o alcançar, é na minha opinião, o ponto mais interessante de análise. E o que poderia perfeitamente ter sido um excelente filme — se existisse mais empenha na ideia inicial, e menos preguiça no desenvolvimento da narrativa — acaba por transformar-se num típico filme de classe B, que tenta mesclar horror, critica social e humor (juntando nudez e sexualização exageradas à mistura), resultando numa mixórdia sem sentido concreta. Não adianta gastar todo o dinheiro para no fim apresentar ao público nudez, gore e efeitos especiais, esperando que o público não sinta falta do essencial... esses elementos não bastam para manter um bom filme do princípio ao fim, e o resultado é notório!
E ainda que recorra a referências icónicas como «The Shining» ou «Laranja Mecânica», o resultado não é, de tudo, algo que chegue perto desses grandes. Mas sim um filme que se arrasta por um espaço temporal demorado, e para o qual, em boa verdade, uma hora e meia bastaria.
Em última análise, «A Substância» revela-se, assim, uma obra que oscila entre a sedutora ilusão da técnica estética excessiva, e a frustração duma narrativa superficial que não consegue “descolar” verdadeiramente. E que no fim de contas, acaba por não saber exatamente o que pretende ser, resultando numa dialética entre um terror que não chega a assustar de verdade, e num tipo de sátira sem profundidade o suficiente que consiga desconstruir os alicerces do patriarcado e ideais inatingíveis de beleza... nem nada de coerente entre os dois. Se ao menos as tentativas de humor salvassem o filme... mas não, nem isso.
A única verdadeira mensagem do filme é-nos contada nos primeiros trinta e tal minutos iniciais, o resto meus caros, é fogo de artificio!
— João Edgar Silva
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